Vidas quebradas e sonhos partidos
Manifestação no Rio de Janeiro em 1968 contra a ditadura militar (Foto: Arquivo Nacional/Correio da Manhã) |
Há 56 anos, as forças obscuras do autoritarismo dos militares apoiadas por setores da classe média conservadora, pelos meios de comunicação, pelas grandes empresas e pelo governo dos Estados Unidos, vilipendiavam do poder o presidente João Goulart. Na calada da noite, como é característica de quando se age de formas escusas, tropas golpistas precipitaram-se em direção ao Rio de Janeiro, comandadas pelo General Mourão Filho. O Brasil que foi dormir sob uma democracia, acordou em uma ditadura no dia 01 de abril. Ou melhor, não acordou. A noite escura perdurou sob um pesado véu cor de chumbo. O 31 de março de 1964 durou 21 anos.
Memória e esquecimento são duas faculdades humanas, às quais Nietzsche chamou a atenção na Segunda Consideração Intempestiva. Devemos cultivá-las, ensinava o filósofo, a fim de preservar a saúde de um indivíduo, de um povo, de uma civilização. A memória é inquieta e seletiva, assim como o esquecimento. Recorda-se e olvida-se somente aquilo que interessa. As luzes se apagam, mas há sempre algum vestígio.
Necessitamos da História para viver e para agir, sob o risco de reproduzirmos os erros passado. O ofício dos historiadores é, como ensinou Eric Hobsbawm, lembrar o que outros esquecem. A História vai além da memória. Segue um rigor prático, constrói uma narrativa controlada por indícios, pressupõe uma crítica. Não é simplesmente o acúmulo de dados à esmo. Há a fiabilidade de uma dimensão ética.
Em uma sociedade que destrói os mecanismos sociais que vinculam as experiências pessoais à das gerações predecessoras, o ofício do historiador precisa arrancar a tradição ao conformismo que dela quer se apoderar, ensinava Walter Benjamin, resoluto de que os mortos jamais estarão em segurança se o inimigo vencer. E o inimigo, como disse Benjamin, não tem cessado de vencer.
Lembremos das centenas de mortos e desaparecidos da Ditadura Civil-Militar, de suas vidas quebradas e seus sonhos partidos. Não nos olvidemos da tortura e violência, da censura e da repressão, para que o autoritarismo, a ignorância e o negacionismo não apaguem da memória a lembrança dos nossos mortos, os mortos da ditadura.
Um dia de março para não esquecer,
Campina Grande-PB
31-03-2020
Textos citados
BENJAMIN. Walter. “Teses sobre o conceito da história”. In: ________. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução Sérgio Paulo Rouanet;
Prefácio Jeanne Marie Gagnebin. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994.
HOBSBAWM, Eric. Era dos Extremos: o breve século XX: 1914-1991. Tradução Marcos Santarrita; revisão técnica Maria Célia Paoli. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
NIETZSCHE, Friedrich. Segunda Consideração Intempestiva: da utilidade e do inconveniente da História para a vida. Tradução Antônio Carlos Braga e Ciro Mioranza. São Paulo: Escala, 2008.
Bibliografia básica consultada
DREIFUSS, René Armand. 1964. A conquista do Estado: ação política, poder e golpe de classe. Petrópolis: Vozes, 1981.
FERREIRA, Jorge. DELGADO, Lucília de Almeida Neves. (Org). O Brasil Republicano: o tempo da experiência democrática: da democratização de 1945 ao golpe civil-militar de 1964. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.
FICO, Carlos. História do Brasil contemporâneo. 1 ed. São Paulo: Contexto, 2019.
REIS FILHO, Daniel Aarão. Ditadura e democracia no Brasil: do golpe de 1964 à Constituição de 1988. 1 ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2014.
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