Postagens

Mostrando postagens de abril, 2020

Afinal, de onde surgiu a sífilis?

Imagem
Théodore de Bry,  Colomb à la rencontre des indigènes , 1549. Gravura, Biblioteca Nacional da França. Há muitas controvérsias quanto a origem da sífilis. Talvez nenhuma outra doença tenha sido envolta em tantas polêmicas quanto a sua ascendência. Tal razão pode se dever ao caráter pecaminoso e vergonhoso do qual essa enfermidade foi revestida. Após o ato sexual, a bactéria da sífilis ( Treponema pallidum ) adere-se à mucosa genital, onde se multiplica. A região quente e úmida do pênis ou da vagina ocasiona sua evolução. Manifesta-se uma ferida aberta, de cicatrização espontânea, peculiar da doença. O perigo da sífilis, reside no fato de que a bactéria ao atingir a corrente sanguínea, ser transportada pelo sangue e pela linfa para órgãos vitais, podendo comprometer o cérebro e o coração. A bactéria atinge também os ossos e, após a morte, possibilita a reconstituição de sua história a partir de recursos arqueológicos, antropológicos, biológicos e genéticos.  A hipótese mais ace

Quem tem medo da história?

Imagem
Pierre Mignard, Clio , 1689. Óleo sobre tela, 143,5 x 115 cm. Museu de Belas Artes de Bucareste. A História, classificou o escritor francês Paul Valéry, é o produto mais perigoso da química do cérebro humano.  Por quê? Quem tem medo da História?  No Monte Parnaso, a morada das musas, as filhas de Mnemósine e Zeus, que tem o dom de dar existência àquilo que cantam. Dentre as musas, uma delas se destaca. É Clio, a musa da História. Nas mãos porta o estilete da escrita e a trombeta da fama. É a filha mais dileta da Memória. Seu dom de narrar o passado e fazer lembrar, com a trombeta conferia um caráter notório àquilo que solenizava. A História, dentre todas as ciências, possuí o atributo de registrar o passado, tem a autoridade para falar sobre outros tempos. Mas sua função não é mais a de celebrizar homens e datas pretéritas.  A História deve estar à serviço da vida. Guiada por um compromisso ético com os seres humanos que viveram em outra temporalidade, sob a pena de

O veneno que cura II

Imagem
Paul Ehrlich e Sahachiro Hata, 1910. Museu Memorial Hata, Japão. As descobertas processadas no campo da microbiologia, na segunda metade do século XIX inauguraram uma nova fase sobre o conhecimento das doenças infecciosas. Longa trajetória e de difícil aceitação. Ficava comprovada a existência de microrganismos causadores das moléstias. Essas observações implicaram a redefinição do próprio conceito das doenças.  A sífilis, por exemplo, era entendida como uma irritação das mucosas genitais provocadas pelo excesso da atividade sexual. Era compreendida, portanto, não somente como uma doença de caráter venéreo, isto é, adquirida através das relações sexuais, como venereamente produzida, ou seja, um produto das relações sexuais. A lues venérea era compreendida, portanto, como uma enfermidade produzida pelo desregramento sexual. Doença das prostitutas e dos libertinos, dos sujeitos históricos que tinham relações sexuais consideradas promíscuas e fora da norma. Uma espécie de puniçã

O veneno que cura I

Imagem
L'espaignol afflige du mal de naples . Gravura retirada do manuscrito de Fra Sebastiano Molini da Bologna As doenças acompanham a humanidade desde o seu aparecimento no planeta. Vítima e testemunha das intempéries que lhe assaltam o corpo, o ser humano provavelmente se debruçou desde cedo sobre os seus enfermos com o desejo de curá-los.   Durante muito tempo, devido a influência hipocrática, prevaleceu a imagem da doença como desequilíbrio do corpo. Acreditava-se que as enfermidades eram fruto de alguma desordem natural interna do próprio organismo.  A terapêutica empregada consistia então, basicamente, em restituir o equilíbrio outrora perdido. Plantas, chás, dietas, exercícios, purgativos, vomitórios, sangrias, estão entre alguns dos muitos tratamentos empregados desde a antiguidade.  Não se sabia que as doenças infecciosas eram causadas por microorganismos. Mas isso começou a mudar dentro de uma perspectiva da longa duração. Observou-se que as doenças eram "pa

Criatividade sifilítica

Imagem
 Arnold Böcklin, Autorretrato com a morte como violinista , 1871-74. Óleo sobre tela, 75 x 61 cm. Nationalgalerie, Berlim. A sífilis como doença em si tinha uma causa clara e compreendida de forma singular. Contrai-la não estava envolto em mistério. Era uma espécie de oferenda terrível, difundida por um emissário, ocasionalmente desavisado, a um receptor incauto. Metaforicamente, significava tudo o que havia de horrível, sujo e decadente, pois associada era a debilidade, a fraqueza - física e moral -, a corrupção e ao pecado.  Após penetrar o corpo, o T. pallidum  adere-se a região quente e úmida da mucosa genital e se multiplica. Surge então uma ferida aberta característica da doença. Uma vez na corrente sanguínea, a bactéria se espalha pelo organismo. Em seguida, manifesta-se toda sorte de manchas e feridas na pele por toda a extensão do corpo. A gravidade está no fato da bactéria ser transportada para órgãos como o coração e o cérebro. A doença poderia estacionar numa fase

A doença do outro

Imagem
Ticiano, Retrato de Girolamo Fracastoro , 1528. Óleo sobre tela, 84 x 73,5 cm. Galeria Nacional, Londres.  As doenças, em certo sentido, não existem até que alguém as nomeie. Longe de ser somente uma manifestação patológica no corpo, a doença é uma imbrincada construção da linguagem. Ao longo da história, as doenças receberam suas nomenclaturas saturadas de significação. Quando uma doença desperta o medo, apavora, causa vergonha e gera culpa, ela é atribuída ao outro, o que vem de fora. O nome da sífilis, infecção sexualmente transmissível causada pela bactéria  Treponema Pallidum , foi fixado a partir de um poema do médico e poeta genovês Girolamo Fracastoro intitulado  Syphilis sive morbus gallicus . Em tradução livre do latim, significa "Sífilis ou mal francês".  O poema narra a história de um pastor chamado Siphilus que tanto amou o seu rei, Alcithous, ao ponto de não somente dedicar-lhe culto divino, mas induzir tal idolatria ao povo de sua terra. Esse

Sífilis e virilidade

Imagem
Christiaen van Couwenbergh,  Três jovens brancos e uma mulher negra , 1632. Óleo sobre tela, 104 x 127 cm. Museu de Belas Artes, Estrasburgo. Uma doença pode informar muito sobre uma sociedade, seus valores, práticas e comportamentos sociais. A história da sífilis é ao mesmo tempo uma denúncia contra o machismo, o patriarcado e o racismo. Cenas escusas e perversas marcaram a trajetória dessa doença e os sentidos sociais que lhe foram atribuídos no Brasil Colônia.  Tida por Gilberto Freyre como a doença por excelência da casa-grande e da senzala, a qual o filho do senhor de engenho contraia "quase brincando", - eufemismo freyriano para ocultar as violências sexuais sofridas pelas mulheres escravizadas -, entre as negras e mulatas ao se desvirginar aos 12 ou 13 anos. A sífilis era considerada doença de homem-macho, cujas marcas produzidas pela  T. pallidum  no corpo (características da sífilis secundária) os rapazes exibiam com orgulho, pois aquele que não a trouxes

Sífilis, o mal venéreo

Imagem
Richard Cooper, Sífilis , 1912. Óleo sobre tela.  Quando uma doença tem uma origem soturna, ela tende a ser impregnada de sentidos. Os objetos do mais profundo pavor passam a ser identificados à doença, e a própria doença em si se torna uma metáfora. Susan Sontag apontou esse caminho ao dissociar a realidade objetiva de uma doença das suas representações simbólicas. A escritora estadunidense mostrou como o nome da doença pode ser usado como metáfora e impor sentidos negativos à outras coisas. Na pintura do britânico Richard Cooper, os temores dos esculápios e as representações sociais da sífilis foram transpostos metaforicamente para a arte. Sob o enganoso véu dos prazeres fáceis da carne, a prostituta oculta as temíveis e funestas consequências da sífilis que se precipita na forma de uma figura horrenda sobre o cavalheiro desolado, acima do qual pesa os juros do capital desperdiçado, um tributo à Vênus. De agir insidioso, dissimulada em seus sintomas iniciais e lenta nos seu