Criatividade sifilítica

 Arnold Böcklin, Autorretrato com a morte como violinista, 1871-74. Óleo sobre tela, 75 x 61 cm. Nationalgalerie, Berlim.

A sífilis como doença em si tinha uma causa clara e compreendida de forma singular. Contrai-la não estava envolto em mistério. Era uma espécie de oferenda terrível, difundida por um emissário, ocasionalmente desavisado, a um receptor incauto. Metaforicamente, significava tudo o que havia de horrível, sujo e decadente, pois associada era a debilidade, a fraqueza - física e moral -, a corrupção e ao pecado. 

Após penetrar o corpo, o T. pallidum adere-se a região quente e úmida da mucosa genital e se multiplica. Surge então uma ferida aberta característica da doença. Uma vez na corrente sanguínea, a bactéria se espalha pelo organismo. Em seguida, manifesta-se toda sorte de manchas e feridas na pele por toda a extensão do corpo. A gravidade está no fato da bactéria ser transportada para órgãos como o coração e o cérebro. A doença poderia estacionar numa fase em que seria apenas um incômodo físico, devido as deformações provocadas, ou seguir seu cortejo fúnebre de horrores até a paralisia geral e por fim à morte, de forma lenta e profundamente dolorosa. 

Apesar de todo esse quadro pavoroso, a sífilis conseguiu ganhar uma reputação positiva, conforme demonstrou Susan Sontag em Doença como Metáfora. Isso porque na virada do final do século XIX para o início do século XX, a doença foi correlacionada à atividade mental intensa. Para Susan Sontag, isso significava uma espécie de homenagem a todos os pintores - Paul Gauguin (1848-1903), Toulouse-Lautrec (1864-1901) -, escritores - Charles Baudelaire (1821-1867), Guy de Maupassant (1850-1893), Gustav Flaubert (1821-1880) - e compositores - Robert Schumann (1810-1856), Franz Schubert (1797-1828) -, que terminaram a vida tomados pela letargia sifilítica. 

A literatura de Thomas Mann oferece um conjunto de metáforas sobre a sífilis. No romance Doutor Fausto, Serenus Zeitblom, o melhor amigo de Adrian Leverkünh, conta a história deste jovem compositor, que em troca de intelecto e criatividade extraordinários contrai intencionalmente sífilis, e, renunciando ao amor, negocia sua alma em um pacto com o demônio de modo que a infecção se restringisse ao seu sistema nervoso central (neurossífilis) para aprofundar a sua inspiração artística, conferindo-lhe assim vinte e quatro anos de um gênio e criatividade incandescentes, que acabará por resultar em um período de prostração e loucura posterior.

Mesmo revestida de sentidos negativos, a sífilis também foi representada, embora de forma sinistra, como sinônimo de criatividade artística. 

Terça-feira,
14-04-2020
Campina Grande.


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