Sífilis, o mal venéreo

Richard Cooper, Sífilis, 1912. Óleo sobre tela. 

Quando uma doença tem uma origem soturna, ela tende a ser impregnada de sentidos. Os objetos do mais profundo pavor passam a ser identificados à doença, e a própria doença em si se torna uma metáfora. Susan Sontag apontou esse caminho ao dissociar a realidade objetiva de uma doença das suas representações simbólicas. A escritora estadunidense mostrou como o nome da doença pode ser usado como metáfora e impor sentidos negativos à outras coisas.

Na pintura do britânico Richard Cooper, os temores dos esculápios e as representações sociais da sífilis foram transpostos metaforicamente para a arte. Sob o enganoso véu dos prazeres fáceis da carne, a prostituta oculta as temíveis e funestas consequências da sífilis que se precipita na forma de uma figura horrenda sobre o cavalheiro desolado, acima do qual pesa os juros do capital desperdiçado, um tributo à Vênus.

De agir insidioso, dissimulada em seus sintomas iniciais e lenta nos seus efeitos letais, a sífilis foi considerada durante muito tempo como uma das entidades nosológicas mais funestas da humanidade.  A doença a que chamamos de sífilis se tornou conhecida na Europa no século XV. Há muita controvérsia sobre a sua origem. A hipótese mais aceita é que esse flagelo já existia entre os povos autóctones da América. Os primeiros colonizadores levaram-na em sua corrente sanguínea para o Velho Continente [1]

Quando do seu aparecimento no continente europeu, os cânones do pensamento astrológico consideraram-na uma "[...] consequência direta da conjunção de Saturno e Júpiter, na casa de Marte, sob o signo de Escorpião, ao qual estariam submetidos os órgãos sexuais" no dia 25 de novembro de 1484. A explicação astrológica ganhou muitos adeptos e contribuiu para estabelecer o caráter venéreo da sífilis [2]. A doença foi denominada de lues venerea, termo que vem do latim lues, praga, epidemia e venereus, relativo ao amor sexual, de Vênus, a forma latina da deusa grega do amor.

As doutrinas cristãs concorreram para significá-la como um castigo divino para o pecado da carne. A sífilis foi interpretada como uma punição de Deus para a depravação e o excesso sexual. Em seu papel de flagelo a sífilis não era revestida de um caráter misterioso: contraí-la era uma consequência geral de fazer sexo com o portador da doença [3]. Em torno da lues ordenavam-se as fantasias a respeito da culpa pela contaminação sexual. No Hospital Geral de Paris, em 1679, os doentes venéreos somente seriam aceitos sob a condição de se sujeitarem, antes de mais nada, à correção de seu comportamento e serem chicoteados [4].

Considerada uma doença dos libertinos e das prostitutas, a sífilis implicava um julgamento moral a respeito do sexo fora da norma. Os doentes foram profundamente estigmatizados. 

A primeira noite de abril,
Campina Grande-PB
01-04-2020.


[1] QUETÉL, Claude. The history of syphilis. Baltimore, Maryland: The Johns Hopkins University Press, 1990.
[2] CARRARA, Sérgio. Tributo a Vênus: a luta contra a sífilis no Brasil, da passagem do século aos anos 40. Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 1996. pp. 26-27.
[3] SONTAG, Susan. Doença como metáfora. Aids e suas metáforas. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
[4] FOUCAULT, Michel. História da loucura na idade clássica. São Paulo: Perspectiva, 1978.

Sugestão de leitura:

ARAÚJO, Rafael Nóbrega. O "terrível flagello da humanidade": os discursos médico-higienistas no combate à sífilis na Paraíba (1921-1940). Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal de Campina Grande, Centro de Humanidades. Campina Grande, 2020.  
BASTISTA, Ricardo dos Santos. Sífilis e Reforma da Saúde na Bahia (1920-1945). Salvador: EDUNEB, 2017.
ROSS, Sílvia de. Sífilis, o mal de todos: tema médico-científico nacional, discussões e práticas educativas no Paraná na primeira metade do século XX. Tese (Doutorado em Educação). Universidade Federal do Paraná. Curitiba, 2017.






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